Mudanças de Paradigmas

(Publicado na Revista da Faculdade Teológica Batista Equatorial)

Barbara Helen Burns

Acabei de receber a última edição da revista Mission Frontiers (mar/apr 2013). A revista toda está dedicada a análise de uma mudança de paradigma recente nos grandes congressos missionários universitários, URBANA, que acontecem a cada três anos nos Estados Unidos desde 1946. Em dezembro de 2012 participaram 19.000 estudantes (sim, dezenove mil) que foram eletrificados pelas mensagens de David Platt, autor do livro Radical, (vendeu 4.000 livros em três dias) e outros preletores. Os analistas considerarm que URBANA 2012 sinalizou uma mudança de paradigma porque era diferente dos recentes congressos que de forma crescente enfatizaram ação social e ecológica, diminuindo a chamada para pregar o Evangelho de Jesus Cristo a todos os povos. Estava seguindo o mesmo trilho da SVM (Movimento de Voluntários Estudantis) que tinha sido o motor impulsionador de grandes movimentos de missões no final do Século XIX e no início do Século XX. O primeiro Congresso Internacional de Missões em Edimburgo foi resultado do SVM, mas, com a passagem do tempo e a entrada de novas teologias mais humanistas e iluministas, o SVM perdeu força e eventualmente desapareceu. URBANA seguia firme os passos de declínio do SVM.

Mas este paradigma mudou com a URBANA 2012. Voltou para as Escrituras como normativas e inspiradas por Deus e para o mandato da igreja de colocar prioridade no alcance das nações com a mensagem de salvação e transformação em Jesus Cristo. A plateia respondeu com alegria e dedicação. Quatro mil assinaram cartões de compromisso, dando suas vidas para missões de médio e longo prazo para cumprir a vontade de Deus tão claramente explicada por Jesus. Boa mudança de paradigma!

A minha caminhada dentro do movimento brasileiro de missões tem sido longa e fascinante também, com mudanças boas. Desde o início da década de ’70, quando aconteceu no Brasil um novo surto de envio de missionários transculturais, vi e participei em grande parte da formação de algumas agências e escolas de preparo missionário, da formação da AMTB (Associação de Missões Transculturais Brasileiras), da APMB (Associação de Professores de Missões no Brasil), da COMIBAM e dos Congressos Brasileiros de Missões, agora preparando para o 7º. Experimentei o aumento e depois o nivelamento do interesse missionário nas igrejas, e agora talvez a solidificação e maturação de algumas igrejas e escolas teológicas com bases missiológicas.

Uma coisa que me impressionou e me alegrou muito nestes anos de processo missionário foi a unificação de diferentes denominações e alas teológicas em torno do desafio transcultural. Muitas barreiras foram quebradas e muitos eventos feitos em conjunto. Havia uma sensação de grande necessidade da ajuda dos outros irmãos, pois a tarefa era grande demais. Unimo-nos em torno do enorme mandato bíblico de levar as boas novas de Jesus às nações, a mensagem da sua morte pelos pecados e a sua ressurreição, dando vida nova. Com humildade buscamos na Palavra diretrizes e ouvimos uns aos outros para que pudéssemos crescer e expandir nossos próprios horizontes missionários.

Infelizmente, se minha impressão está certa, isto está mudando. Está se formando lealdades em outros sentidos e a desconfiança e até desprezo podem estar semeando discórdia e linhas divisórias em nosso meio. Creio que está havendo uma mudança de paradigma no movimento brasileiro de missões, mas não é uma mudança nova na história da missão da igreja. Parece uma velha história se repetindo, e para mim, uma história viva e triste que estava acontecendo nos congressos de URBANA antes de 2012.

Nos Estados Unidos no início do Século XX começou também uma mudança. Depois de um século de trabalho sacrificial e de largo alcance, algumas pessoas começaram a aceitar avaliações seculares e humanistas da Palavra de Deus. Não era mais a revelação de Deus definitiva e normativa e de total confiança. Perdeu, com isso, o fundamento, o objetivo e a direção das igrejas missionárias. Nos anos de ’30 surgiu o “Hocking Report”, um relatório de um homem de negócios e sua comitiva, comissionados pelo Concílio Missionário Internacional (CMI), e que rodaram os campos missionários para descobrir necessidades e estratégias missionárias. Ele voltou e publicou o documento que influenciou em parte as largas mudanças teológicas e missiológicas nos Estados Unidos e entre os membros do CMI, que tinha sido formado em 1921. Para ele, não precisava enviar mais missionários evangelistas pioneiros, pois a salvação está em todos os lugares. Para ele, Deus revelou-Se também no hinduísmo, islamismo, budismo e as demais religiões. A missão da igreja, para ele, era melhorar a vida das pessoas nas suas sociedades e nas suas religiões; seria até uma atitude arrogante tentar impor nossa religião cristã, quando todos tem a sua própria religião, tão boa quanto nossa. Missões evangelísticas e discipuladoras se tornaram em uma missão de apenas trabalhos sociais.

Junto com a aceitação abrangente nas igrejas americanas e europeias desta ideia relativista, surgiu o termo “Missio Dei”, que para uma boa parte significava “a missão de Deus no mundo”, mas fora e sem necessidade da igreja ou dos crentes. A missão de Deus não estava restrita a evangelização e discipulado, mas manifesta em todo tipo de boa ação independente do Cristianismo. O termo “reino de Deus” assumiu este sentido também  – fora da igreja e fora do Evangelho. “Vamos expandir o reino” significava qualquer ajuda humanitária, qualquer demonstração que seria uma manifestação do amor de Deus. Com isso um grupo parou de usar o termo “missões” (o conjunto de ações para alcançar as nações com o evangelho de perdão e salvação em Cristo, com todas as implicações de transformação social, educacional e de saúde) e mudou para “missão” – tudo que Deus faz no mundo (e, para alguns, o que Ele faz na igreja). Tudo é a missão de Deus. Houve uma mistura e ficou tão missionário o louvor, o ensino, o discipulado, a administração, as festas na igreja local quanto enviar um missionário transcultural para um povo não alcançado. Por isso Stephen Neil falou “se tudo é missão, nada é missão”. Acabou o significado do termo como alcance transcultural ou “até aos confins da terra”.

Com o tempo surgiu o termo “Missão Integral”, que no início foi considerado um esforço de rebater a crítica, em maior parte infundada, que as missões evangélicas não faziam obras sociais. Significa incluir, e até enfatizar mais, a ação social com a evangelização e plantio de igrejas. Com isso temos voltado de novo para a alegação que “todos são missionários”. Todos são missionários porque tudo que fazemos de bem nas áreas de ajuda social e ecológica fazem parte do mandato missionário de Deus, e no mesmo nível (ou, para alguns, o mais importante).

Este termo “Missão Integral” se tornou popular e quase que exclusivamente politicamente correto” em nosso meio no Brasil. A migração entre as palavras “missões”, “missão” e “Missio Dei”, pode ser totalmente inocente e apenas uma mudança semântica, ou pode ter outros motivos escondidos no fundo, ligados ao passado. Tudo isso tem criado mudanças sutis (e as vezes nem tanto), de atitudes e ênfase. Com este breve resumo do passado vou tentar definir e trazer à luz algumas dessas mudanças com a intenção de rever se vale a pena continuar com a separação e conflito baseado em novos conceitos nem sempre corretos.

1. Mudanças nas Avaliações do Passado – o Desconstrutivismo

Faz parte do pós-modernismo desconstruir os “heróis” do passado. Avaliações objetivas e benéficas (inclusive dos erros e dos acertos) são descartadas com a finalidade de destruir as imagens positivas (tentando corrigir o excesso de hagiografia, ou visão exageradamente positiva) construidas ao longo da história. Duas acusações são marcantes: que os missionários ajudaram os poderes colonialistas a roubar terras e a oprimir os povos e que os missionários do passado não se preocuparam com o bem social das pessoas onde foram trabalhar. Estas duas ideias são antigas na literatura americana secular e cristã liberal e secular, e tem se infiltrado em nosso meio no Brasil. Felizmente, alguns autores eruditos (só de língua inglesa por enquanto) como Andrew Walls e Dana Robert tem derrubados os estereótipos desses acusadores.

Como o Século XIX foi um século do avanço colonialista dos países protestantes, há muitas acusações (especialmente da parte dos que não são crentes, mas que muitos evangélicos tem aceito sem reflexão ou sem conhecimento de informações menos distorcidas), que os missionários chegaram com a Bíblia na mão, deram a Bíblia para os “nativos” e saíram donos da terra, junto com os seus países de origem. Deixa parecer que os missionários ajudaram os colonialistas a desapropriar e oprimir os povos colonizados.

Vi um vídeo (secular) que conta a história de David Livingstone. Nele, o narrador diz: “Depois que a Inglaterra aboliu a escravidão em 1834, traçaram planos para converter os nativos, enquanto se apropriaram das suas terras. Queriam ‘civilizar’ os lugares, mas com vantagens comerciais”. O narrador não separou os verdadeiros missionários e crentes na Inglaterra dos que eram apenas “cristãos” nominais.

A realidade foi bem diferente do que estes chavões históricos apresentam. Há pesquisas profundas que tem sido feitas nos últimos anos que nos permite ver uma história muito melhor. O fato de dois terços da população cristã no mundo existe fora dos países colonialistas demonstra que não era uma “imposição” colonialista, mas uma verdade que se tornou realidade para os povos evangelizados e que eles levaram para frente. Por isso Dana Robert diz que há uma “explosão” de avaliações objetivas e mais positivas do legado de missionários do Século XIX e depois. Quantos missionários batalharam contra as forças colonialistas dos seus próprios países, reclamaram das injustiças e tentaram poupar as pessoas do sofrimento. Se não batalharam diretamente, em grande parte tentaram “converter” o colonialismo, colocação que é a tese de Robert no seu livro Converting Colonialism: Visions and Realitites in Mission History.  

No mesmo livro, Robert diz que os primeiros missionários pietistas para Índia, Ziegenbalg e Plütschau, eram exemplos dos missionários posteriores. Foram perseguidos pelas autoridades colonialistas, e até presos, mas mesmo assim aprenderam as línguas, traduziram a Bíblia, fundaram escolas, e levaram muitas pessoas à fé.

Andrew Walls disse que o Império Britânico proibiu conversão cristã em muitos países e foi a principal razão da disseminação do Islamismo em países como o Sudão. “O regime colonial britânico favoreceu o Islamismo na África mais que todos os jihads juntos”. Um missionário destacado (Temple Gairdner) criticou severamente a política britânica dizendo que era covarde e anticristã. Os oficiais britânicos talvez um dia vão ver que toda esta subserviência aos muçulmanos e o negligenciamento da sua própria fé não ganha para eles nem respeito, nem gratidão, nem afeição do povo, mas o oposto (Walls, 2002:150-51).

Sobre as ações de ajuda social, contrário a opinião de alguns, a maioria dos missionários evangélicos do Século XIX e depois, se envolveram em reformas sociais profundas. Alguns críticos dizem que eles não se preocupavam com o bem estar social, não se identificavam com o povo, eram cooperadores dos colonialistas, e eram arrogantes, paternalistas. (Houve apenas um grupo pequeno de hiper-fundamentalistas que se encaixam neste quadro.) No entanto, tenho em casa uma pilha de livros eruditos e bem pesquisados que desfazem esta tese. Um terço da minha biblioteca pessoal é de biografias de missionários que não se encaixam nesta descrição, de jeito nenhum. Homens e mulheres como David Livingstone e Mary Slessor deram suas vidas para ganhar almas e acabar com o mercado de escravos na África. Milhares de hospitais, escolas, orfanatos, projetos, treinamento de lideranças de igrejas e nações surgiram no Século XIX. 

O movimento que chamamos de “Missões Modernas” começou com William Carey, um homem humilde de espírito, erudito, fluente, profundamente identificado com a realidade indiana. O principal objetivo dele era evangelizar e formar igrejas com liderança indiana, pessoas que tinham a Bíblia nas mãos e que poderiam passar o ensino da Palavra para frente. Por isso lutou na tradução da Bíblia de forma extraordinária, traduzindo quase 40 línguas e dialetos. Como servo de Deus, era natural ele também amar as pessoas e lutar para que pudessem ter menos sofrimento. Tentou, através da natureza, mostrar que há um Criador, combateu de frente práticas de eutanásia de velhos, doentes e crianças e o assassino de viuvas nos crematórios dos seus maridos. Carey começou o primeiro jornal na Índia e organizou uma sociedade de agricultores. Conseguiu enxergar as terríveis bases do sistema de castas e proibi-lo nas igrejas, levando as pessoas recém-batizadas a tomar a ceia em conjunto, assim formando igrejas heterogêneas e unidas, sem a escravidão das castas.

Carey não viu problema em integrar a pregação do Evangelho, que claramente era sua prioridade, e o discipulado que incluia todos os aspectos da vida e da sociedade. Ele amava o povo e com força extraordinária lutou para o bem deles. 

Com a progressão de ideias seculares, a perda da confiança nas Escrituras e a crença de que todas as religiões levam a Deus, o humanitarismo se tornou o motivo principal de fazer missões no Século XX nos Estados Unidos. Para as igrejas e as pessoas que acreditaram nisso, boas obras sociais se tornaram o único motivo de ir além das fronteiras de seu país. Não levaram o Evangelho da salvação, mas o melhoramento social temporário. Acreditaram que o acesso a salvação ocorra através de boas obras, por isso muitos foram em parte para ganhar a sua própria salvação. Criou-se a caricatura dos missionários do passado de terno, Bíblia na mão, pregando, enquanto as pessoas morrem de fome. Quase não existe registro de missionários, em nenhum tempo, que não se importavam com o bem estar das pessoas que estavam evangelizando. Há muitos exemplos notórios que conhecemos, e milhares que não temos registro, mas que fizeram a mesma coisa.

Lottie Moon é um exemplo desta dedicação profunda. Deixou riquezas, um noivo e todo conforto para sair dos EUA e ir para a China, onde ela morreu de fome porque deu a sua própria comida para os chineses famintos durante uma época de escassez de alimentos.

James Fraser deixou uma profissão de alto nível na Inglaterra para ir para China e Birmânia, vivendo entre os Lisu, com quem ele se identificou totalmente em uma vida privada de comida saudável e moradia confortável. Deus usou-o grandemente para ganhar milhares de Lisu com a mensagem encarnada de Jesus Cristo e este crucificado e ressurreto.

William Carey, Adoniram Judson e outros que foram aos campos no início do Século XIX tiveram muitas dificuldades financeiras, sem sustento, sem apoio, sem email, sem Skype e sem Sedex! Carey viveu numa favela e trabalhava na agricultura para sobreviver, dando para ele grande conhecimento e apreciação cultural. Ann e Adoniram Judson sofreram enormes privações, dois anos de prisão chocantes e anos de luta para aprender a língua e ganhar as primeiras pessoas para Cristo. Eles, e muitos outros, foram bem sucedidos e plantaram as sementes do Evangelho e novas igrejas onde foram.

Paul Hiebert traça o desenvolvimento de conceitos raciais e de contextualização no seu último livro The Gospel in Human Contexts (2009). Ele mostra como os antropólogos e a sociedade em geral no Século XIX seguia Darwin, Freud e Marx ao colocar a raça humana em hierarquias e categorias. Os cristãos, baseado em Gênesis, já argumentaram que todos os seres humanos eram igualmente descendentes de Adão e Eva. Os missionários, mesmo influenciados pelas suas sociedades (algo impossível escapar), foram os únicos a morar com as pessoas, aprender e traduzir as suas línguas, dando dignidade e inclusão, o que ajudou em geral preservar as suas identidades culturais muito mais do que outros.

2. Mudança de “Missões” para “Missão” e “Missão Integral”

Eu continuo usando a palavra “missões” porque vivi estas mudanças de significado no passado, mas me sinto constrangido em fazê-lo em certos contextos, pois não é mais aceito ou “politicamente correto”. Há uma mudança abrangente recente no Brasil para a palavra “missão” ou especialmente “missão integral”, que podem significar algo mais profundo, ou não. Para muitos é apenas três maneiras de falar a mesma coisa. Para outros, remonta para meados do Século XX quando alguns no Conselho Mundial de Igrejas (CMI) e do Concílio Internacional de Missões (CIM) fizeram a mesma mudança, mas com propósito de reduzir a ênfase em projetos missionários evangelísticos. Quando Karl Hartenstein começou usar o termo missio dei  ele queria mostrar que missão começa com Deus e que Ele trabalha no mundo de muitas formas independentes da igreja ou dos missionários. (Que em certo sentido é totalmente certo, pois Deus é o Senhor desta terra e de todos os seus povos!) Basta identificar e ajuntar com a missão de Deus, uma ideia que evoluiu para justificar o sustento de milhões de dólares para movimentos marxistas, alegando que era a missão de Deus.. 

Com isto, a palavra “missão” pode significar muitas coisas, desde a evangelização e discipulado (que inclui toda a vida espiritual e física – o homem integral), até obras sociais sem nenhuma ligação com o Evangelho ou a Bíblia. Muitos estão usando o termo “missão” sem conhecer a história dele. Mesmo assim, para alguns, quem fala em “missões” (no sentido histórico de incluir muitas equipes e variados tipos de obras missionárias) não está atualizado e segue um modelo antiquado e pacato. Esta é uma das mudanças que tem criado separação entre alguns.

“Missão Integral” é outro termo “correto” em nosso meio. É um termo que deve ser desnecessário, pois quando Jesus mandou os discípulos pregar o Evangelho e fazer discípulos em todas as nações, Ele explicou bem: “Ensinando-os a guardar tudo o que tenho ensinado”. Este envio e comissionamento foi integral, completo. Se o missionário vai ensinar a fazer tudo que Jesus ensinou, com certeza inclui como prioritário o Evangelho que Ele especificamente indicou, explicado em todos os Evangelhos e Atos, Evangelho de perdão dos pecados e salvação na Cruz de Cristo, sinalizado em todas as Escrituras (Lc 24.44-52), mas também inclui amor, serviço, cura, ensino, ajuda aos pobres e necessitados. Jesus ensinou tudo isso através da sua vida e das suas palavras. A missão de Deus para Seu povo é integral por natureza.

3. Mudanças de Ênfases nas Conferências e Literatura Missionária Para o Social. Infelizmente muitos que usam o termo “missão integral”, não incluem o Evangelho nem a mensagem da cruz. É quase exclusivamente social. Tenho notado que até algumas agências missionárias nem tem mais o tradicional missionário pioneiro, evangelista e plantador de igrejas. Poucos anos atrás, notei que uma agência de destaque tinha apenas uma pessoa com este perfil entre quase cem missionários! Alguém disse que vinte anos atrás tinha que justificar os projetos sociais com o evangelismo e plantio de igrejas. Hoje tem que justificar o evangelismo e plantio de igrejas com projetos sociais. Ouvi de alguém que nos Estados Unidos houve uma projeção de que 70% das ofertas vão para projetos sociais, e apenas 30% para evangelismo e plantio de igrejas. Se quiser levantar dinheiro, tem que estar fazendo algo social.

Há alguns perigos ligados a esta mudança. Há o perigo de incluir ações sociais no trabalho das agências missionárias como motivo de ganhar dinheiro. Com isso o trabalho para o bem estar das pessoas se torna um mecanismo de aumentar a renda para todos.

Outro perigo é deixar se levar pela onda de ação social, que aos poucos sufoca o evangelismo. A tendência de gostar da atenção que traz, é uma tentação. Com todas estas mudanças, projetos evangelísticos podem ficar deixados para trás.

Em Abril, a Missão Juvep hospedou uma consulta nacional sobre quilombolas. Estava presente o irmão Anchieta, um líder crente do quilombola de São Francisco, em Pernambuco. Uma boa parte da discussão sobre as necessidades dos quilombolas era de água, plantio, projetos de desenvolvimento, que obviamente animou os participantes, expressado com palmas ou “améns”. Quando alguém falou de evangelismo e plantio de igrejas, ninguém se animou ou manifestou alegria. Anchieta notou a diferença, levantouse e falou em bom tom: “o que os quilombolas precisam é conhecer Jesus, a Palavra e a salvação em Jesus. Precisam de igrejas em primeiro lugar.” Ele perguntou de forma bem direta, “Porque vocês não se empolgaram com isso?” A vida dele tinha sido transformada com o Evangelho, e a comunidade estava sendo transformada clara e profundamente como resultado do Evangelho.

O novo Papa Francisco disse uma verdade: “O trabalho social sem Jesus torna a igreja uma mera ONG piedosa”. E sem Jesus todo este trabalho é temporário em todos os sentidos. Melhor construir com verdadeiros fiéis ao Senhor que aprendem amar Jesus e, como Ele, amar o próximo tanto que as mudanças sociais serão feitas de forma permanente, baseadas em sólidas bases cristãs e com vistas a restauração da criação com a volta de Jesus Cristo (Romanos 8.18-25).

4. Mudanças de Unidade no Empreendimento Missionário

Algo impressionante marcou os primeiros anos do movimento missionário no Brasil – a unidade. De repente pentecostais e tradicionais estavam juntos em reuniões de planejamento e oração. Batistas com Presbiterianos, Congregacionais e Assembleianos estavam ombro a ombro pensando em como brasileiros poderiam alcançar o mundo com o Evangelho de Jesus Cristo. Nós sentíamos que era milagre – e um milagre alegre. De repente descobrimos irmãos desconhecidos, do “outro lado da cerca”.

Mas ultimamente tenho sentido falta desta unidade. Há algumas coisas que estão nos dividindo agora – teorias de missiologia, doutrinas, se a missão é integral ou não, se é “missão” ou “missões”, em qual equipe você está, que escola, que agência missionária. Não somos mais “inocentes”, pessoas entusiasmadas e amedrontadas com a novidade de treinar e enviar. Não estamos mais maravilhados com tudo o que a Bíblia ensina sobre isso. Criamos nosso canto e de novo estamos olhando para os outros lados com desconfiança e às vezes arrogância. Não somos mais tão alegres em tomar os passos corajosos de sair das quatro paredes do nosso mundo para levar o Evangelho de Jesus para fora, junto com outros irmãos.

Jesus deixou claro em João 17 que a unidade e amor mútuo é sinal para os de fora que somos de Deus e somos discípulos de Jesus. Em Efésios 4.1-3, Paulo apela para todos andarem de modo digno do Senhor. Como? Em humildade, mansidão, longanimidade, suportando uns aos outros em amor e nos esforçando grandemente em preservar a unidade.

Não podemos abrir mão deste crucial componente da missão da igreja em fazer missões, sempre aprendendo e contribuindo uns com os outros.

5. Contextualização Radical

Em 1972 a organização Fundação de Educação Teológica (TEF, Theological Education Fund, criada pelo Concílio Internacional de Missões em 1958) usou pela primeira vez com âmbito internacional a palavra “contextualização”. Para eles contextualização era algo autêntico, que surge entre o encontro da Palavra de Deus e seu mundo. Este encontro leva ao “praxis” certo de missiologia.  Só que para eles a “Palavra” não era a Bíblia; era a interação contínua, contemporânea de Deus, sem raízes objetivas ou verdade absoluta. As ideias sobre inspiração e interpretação bíblica nesta época foram informadas em grande parte pela Conferência de Fé e Ordem em Louvain (Bélgica). Antes disso, o liberalismo teológico foi informado pelo movimento do “Social Gospel”, (“Evangelho Social”), em que a Bíblia foi descartada como verdade, sobrando apenas ações sociais, algo que deu início ao “fundamentalismo”,  uma reação contra, que, naquela época, simplesmente confirmava a fé ortodoxa de inspiração divina das Escrituras, o nascimento virgem de Jesus, Seu sacrifício na Cruz, sua ressurreição e volta futura. Estes “fundamentalistas” ou evangélicos, como chegaram a ser chamados, acreditavam no absoluto e imutável verdade da Palavra, enquanto os liberais acreditavam que conheciam o “presente e sempre se modificando verdade sobre Cristianismo”. Esta fraca interpretação da verdade das Escrituras incluiu a possibilidade que partes da Palavra eram inválidas e podiam ser descartadas. Para eles o contexto contemporâneo determina o significado do texto e a Bíblia tem que submeter-se a um questionamento recíproco entre si e o contexto contemporâneo. O contexto é a fonte da verdade teológica e a igreja necessita prestar atenção para os “sinais” dos tempos, que é a maneira de Deus falar conosco.  A Bíblia apenas faz parte da dialética no processo; faz a “Palavra de Deus audível e inspira a fé”. 

Desde 1972, quando a palavra “contextualização” foi usada pela primeira vez, os do Concílio Mundial de Igrejas a descartaram. No Congresso de Lausanne em 1974, o evangélico africano Byang Kato pregou em plenário usando esta palavra no sentido de fazer a Bíblia, a revelação normativa para todos os contextos, compreendida, relevante e aplicada. É a Bíblia que julga a cultura, não a cultura que julga a Bíblia ou influencia o seu significado. Para tanto precisa conhecer profundamente a Bíblia, inclusive nas línguas originais, e conhecer o contexto, fazendo com que a Bíblia transforme o contexto conforme a vontade de Deus.

Desde que Byang Kato abriu caminho para o uso da palavra Contextualização no meio evangélico, o significado tem desenvolvido uma variedade enorme de significados e aplicações. Recentemente surgiu o termo “Contextualização Radical” ou “Insider Movements”, em que a identificação cultural é intensa, inclusive com algumas mudanças nos conceitos da tradução da Bíblia. A intenção é apaziguar diferenças, recuperar perdas do passado com arrogância do colonialismo e fazer com que o Cristianismo seja bem parecido com a cultura local. Neste movimento radical há pouco confronto com o pecado e a necessidade de perdão e transformação de vida.

Há pessoas no Brasil que adotam o estilo “radical” de contextualização, mas a maioria não aceita. Existe, porém, esta divisão de visão, uma divergência séria no movimento missionário, especialmente em relação ao Islamismo. Os “radicais” dizem que Alá é o mesmo Deus nosso. (Mas se o Alá dos muçulmanos é o mesmo Deus nosso, então foi o Deus da Bíblia que mandou Gabriel revelar o AlCorão? Ou é nosso Deus é um ser totalmente indiferente e distante dos homens e sua criação?)

A questão da contextualização radical entre os muçulmanos e outros povos é grandemente discutido hoje, especialmente em literatura missiológica americana, mas no Brasil tem dividido amigos e assustado pessoas. Parece o mesmo caminho do Século XX quando a cultura julgava e modificava a Bíblia.

Escrevo este artigo como advertência e desafio. O desafio é de reconhecer que nossa única regra de fé e prática é a Bíblia; sem ela não há outros diretrizes confiáveis. A obra missionária também necessita dela como fundamento e luz para as estratégias de evangelismo e discipulado (que envolve ensinar as pessoas a amar – necessário para transformações sociais). A advertência é que aprendemos com as lições do passado e o enfraquecimento e desaparecimento dos movimentos que descartaram a Bíblia e o Evangelho de Jesus Cristo. Que nós possamos continuar andando com passos firmes nos escritos, nas organizações e nos Congressos para que pessoas possam seguir Jesus e tudo que Ele ensinou.

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